Ver, condenar e desviar: a ‘descoberta’ de Auschwitz na Alemanha dos anos 60
Um jornalista alemão pergunta, no fim dos anos 1950, se um jovem promotor de Justiça de Frankfurt sabe o que se passou em Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Diante da negativa, exalta-se: “É uma vergonha que um promotor alemão não saiba o que aconteceu!”. Irritado, questiona passantes. Ninguém sabe o que a palavra significa.
O trecho é um dos mais surpreendentes do filme “Labirinto de Mentiras”, que está nos cinemas e foi pré-indicado pela Alemanha na competição de melhor filme estrangeiro do Oscar 2016 –sem ter ficado entre os finalistas.
O filme conta a história da gênese da investigação que levou promotores de Frankfurt a processar os nazistas que mantinham a máquina da morte em funcionamento no campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia ocupada.
Mais de 700 pessoas receberam sentenças por participação nos crimes ocorridos no local, em um julgamento que durou de 1963 a 1965, duas décadas após estes terem sido praticados.
De forma inédita, o julgamento de Frankfurt, como se vê no filme, obrigou os alemães ocidentais a lerem, escutarem e falarem a respeito de algo que até então era tabu: os crimes nazistas, cometidos pelas pessoas em volta e, em muitos casos, seus familiares. Para os jovens, era a primeira vez que aquilo era discutido, em particular os detalhes do genocídio dos judeus.
Com a intenção de reconstruir a Alemanha, o chanceler do lado ocidental, Konrad Adenauer (1949-1963), que fora perseguido pelo nazismo, adotou a política de virar a página. Passada a onda de punições capitaneada pelos Aliados logo após a guerra, os ex-nazistas que não tinham sido do primeiro escalão foram progressivamente reabilitados pelo governo alemão, reocupando postos na administração pública, nas universidades e na Justiça.
“O trabalho e o sucesso derivado dele logo cobriram as feridas abertas deixadas pelo passado”, escreveram os psicólogos Alexander e Margarete Mitscherlich em uma obra de 1967. Preocupadas em ter uma Alemanha Ocidental forte e que fizesse frente ao socialismo soviético, as potências capitalistas acharam aquilo uma boa ideia.
Sem esquecimento nem perdão
A “descoberta” dos crimes de seus pais definiu a geração de jovens alemães ocidentais dos anos 1960. Como seus colegas americanos, britânicos e franceses, eles questionavam o poder e as normas, mas com o fato adicional –e crucial– de ter que lidar com o fardo da culpa pelos milhões de mortos em Auschwitz, Dachau, Treblinka e outros.
“O ‘1968’ alemão foi um movimento moral antes de ser político”, definiu o jornalista Hans Kundnani no livro “Utopia or Auschwitz – Germany’s 1968 Generation and the Holocaust”, de 2009.
Muitos dos jovens alemães perderam seus pais na guerra e os que ainda os tinham passaram a questionar sua legitimidade e autoridade moral. Nas palavras do sociólogo Norbert Elias, o nazismo enfraqueceu drasticamente o elo entre as gerações.
Assim, o movimento estudantil do país nos anos 1960 se construiu com mais intensidade e urgência que em outros países e, agora que se podia falar do assunto, passou a apontar diretamente o dedo à elite dirigente da Alemanha Ocidental.
Consolidou-se entre eles a ideia de que, com resquícios autoritários e hierárquicos e repleta de ex-nazistas ou ex-associados a eles em cargos importantes, a República Federal da Alemanha era de alguma forma uma continuação do Terceiro Reich. Ideia essa, diga-se, muito estimulada pela propaganda da Alemanha oriental comunista, que financiava parte dos grupos de esquerda do lado ocidental.
Tal percepção de que habitavam em um Estado fascista levou a repercussões radicais por parte dos jovens, que recorreram a formas de resistências mais condizentes à luta contra regimes totalitários do que democráticos, como a criação da RAF (Fração do Exército Vermelho), também conhecida como grupo Baader-Meinhof e adepta da luta armada que praticou sequestros, roubos e assassinatos a partir dos anos 1970.
A radicalização pode ser resumida na frase de uma de suas líderes, Gudrun Ensslin, ao reagir à morte de um estudante pela polícia em um protesto em 1967: “Violência só pode ser respondida com violência. Essa é a geração de Auschwitz, não dá para argumentar com eles!”
Esquecer de novo
O discurso anti-capitalista e anti-imperialista dos estudantes da Alemanha Ocidental teria impacto na própria “descoberta” dos crimes do nazismo, argumenta Hans Kundnani.
Com o conhecimento dos detalhes ainda recente e em digestão, os jovens ativistas passaram ver o nazismo como um produto nascido do capitalismo, o que acabou, aponta o autor, por minimizar entre eles o senso de responsabilidade coletiva dos alemães pelo regime de Adolf Hitler.
Além disso, focados em atacar o “hoje” do governo de Bonn (capital da República Federal) por suas supostas semelhanças com o Terceiro Reich, os estudantes iam paradoxalmente se interessando cada vez menos pelo “ontem” dos detalhes do regime nazista.
“Em 1968, o nazismo se transformou, nas mentes de muitos dos ativistas do movimento estudantil, de um fenômeno histórico real em uma ameaça abstrata e onipresente”, escreve Kundnani.
O paradoxo aparecia também em alguns dos líderes jovens da época. Ao conhecer Ulrike Meinhof, figura central do grupo radical RAF, o jornalista e historiador do nazismo Joachin Fest contou que a “enérgica autoconfiança” e o “animado espírito de luta” da jovem ativista o fez lembrar dos oficiais nazistas ao lado dos quais ele lutou durante a guerra.