Como Ustra criou e rejeitou ‘Tibiriçá’

Rodrigo Vizeu

“Pela manhã, o próprio comandante major Carlos Alberto Brilhante Ustra foi retirar-me da cela e ali mesmo começou a torturar-me […]. Espancamentos, principalmente no rosto e na cabeça, choques elétricos nos pés e nas mãos, murros na cabeça quando eu descia as escadas encapuzada, que provocavam dores horríveis na coluna e nos calcanhares, palmatória de madeira nos pés e nas mãos. Por recomendação de um torturador que se dizia médico, não deviam ser feitos espancamentos no abdômen e choque elétricos somente nas extremidades dos pés e das mãos.”

(…) 
“Eu passei dia, noite, dia e parte da noite direto em interrogatório. E é óbvio, me dava cansaço e eu dormia, cochilava e era acordada com choques elétricos, com espancamento. Nunca me penduraram num pau de arara, porque acho que a barriga não permitia. Depois desses interrogatórios consecutivos, disseram que eu ia morrer num acidente na Serra das Araras, num acidente com um carro do meu cunhado, que ele teria sido apreendido, e que ele pegaria fogo. Então todas as noites eu era levada para esse carro e desligavam os motores, e de manhã diziam que tinha tido um imprevisto, não podem provocar acidente, no entanto que eu fosse para a serra e aguardasse que seria na noite seguinte”

O relato é de Criméia Alice Schmidt de Almeida e consta no relatório da Comissão Nacional da Verdade. Ela, que integrou a guerrilha do Araguaia, conta ter sido torturada grávida nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo.

Criméia Alice Schmidt de Almeida. Crédito: Moacyr Lopes Junior - 11.jun.2009/Folhapress.
Criméia Alice Schmidt de Almeida, ex-presa política. Crédito: Moacyr Lopes Junior – 11.jun.2009/Folhapress.

A chefia do DOI, do qual Carlos Alberto Brilhante Ustra esteve à frente de 1970 a 1974, foi um divisor de águas na carreira do militar, que chegou a coronel e morreu na última quinta (15).

Ele tivera uma carreira banal desde a tomada do poder pelos militares em 1964, conta Elio Gaspari em “A Ditadura Escancarada”. No QG do 2º  Exército, na capital paulista, atuou na seção de informações apesar de sugestão contrária do resultado de um teste psicotécnico.

Em 1970, antes de assumir o DOI, cobriu as férias de um major que o devolveu com a qualificação de “oficial incompetente”. No fim de setembro daquele ano, assumiria o posto que o colocaria na história.

Cerca de 2.000 presos passaram pelo DOI até 1974. O período em que Ustra chefiou o destacamento registrou 45 mortos e desaparecidos por agentes da unidade. Lá, seu codinome era Tibiriçá. Em 1972, recebeu do Exército a Medalha do Pacificador.

Após deixar o DOI, Ustra se tornou instrutor de operações da EsNI (Escola Nacional de Informações), e a escola passou a ensinar a alunos vindos de diversos órgãos as táticas e técnicas empregadas pelo DOI de São Paulo.

Após 1976, currículos de alguns dos cursos da EsNI passaram a contar com módulo específico sobre o DOI-Codi. Ustra confeccionou uma apostila sobre como neutralizar aparelhos –os esconderijos dos adeptos da luta armada.

Terminado o regime militar, Ustra foi exposto pela primeira vez em 1985, quando a atriz e então deputada Bete Mendes o reconheceu como seu torturador durante visita com o presidente José Sarney a Montevidéu. Ustra, agora ex-Tibiriçá, era adido militar da embaixada brasileira.

O caso criou uma incidente no governo, levando o Exército a divulgar uma nota que afirmava: “Excessos cometidos por integrantes de ambas as partes, lamentáveis por todos os motivos, foram sepultados pela Lei da Anistia.  (…) Os que querem reabrir as cicatrizes de uma luta ultrapassada estão, impatrioticamente, contra as instituições e o processo de normalização política”. Políticos ligados ao governo civil recém-empossado, entre eles Ulysses Guimarães, atuaram para abafar as tensões e criticar o “revanchismo”.

Posteriormente, apesar de beneficiado pela anistia, Ustra foi reconhecido pela Justiça como responsável por tortura, sentença da qual recorria.

Em seu depoimento à Comissão da Verdade, o coronel reformado afirmou: “Durante meu comando, nunca fui punido, nunca fui repreendido, recebi os melhores elogios da minha vida militar (…) Quem tem que estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem tem que estar aqui é o Exército brasileiro, que assumiu, por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo”.

VEJA O DEPOIMENTO DE USTRA À COMISSÃO DA VERDADE: