Alguns séculos de acasos, erros e ambiguidades
Comecemos isso aqui com quatro histórias que vão da Idade Média aos anos 80, da corte chinesa à corte feita a um presidente. Histórias de sorte, azar ou de ambos.
Acasos
Em 10 de junho de 1190, Frederico Barbarossa era imperador do Sacro Império Romano-Germânico e avançava em direção a Jerusalém para tomá-la do sultão Saladino. O exército de Barbarossa era uma das grandes apostas da Terceira Cruzada, que incluía ainda as tropas do reis Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, e Filipe Augusto, da França.
Considerado um gênio político e militar que expandiu o poder germânico e desafiou papas, Barbarossa conseguira arregimentar um exército de até 100 mil para tomar a Terra Santa. Naquele 10 de junho, o imperador decidiu entrar em um rio que corta a atual Turquia, não se sabe muito bem se para atravessá-lo ou para se refrescar. Barbarossa, que usava uma pesada armadura, acabou levado pela correnteza e morreu afogado.
Sem líder, o exército germânico acabou se dissolvendo. Os cruzados ingleses e franceses conseguiram algumas vitórias, mas não conseguiram tomar Jerusalém dos muçulmanos.
Erros
Na manhã do dia 3 de outubro de 1793, o conde britânico George Macartney, enviado pelo rei George 3º à China com a missão de aproximar os dois países, foi acordado e convocado à Cidade Proibida. Lá, aguardava-o sobre o trono não o imperador Qianlong, mas uma carta escrita pelo imperador para o rei, tida como uma das mais humilhantes dos anais da diplomacia britânica.
“Nossas cerimônias e códigos legais diferem tão completamente das vossas que, mesmo se vosso Enviado fosse capaz de adquirir os rudimentos de nossa civilização, vós não poderíeis de forma alguma transplantar nossos hábitos e costumes para vosso solo estrangeiro”, afirma o imperador chinês. Em seguida, Qianlong desdenha da oferta britânica de comércio entre os países e de acesso às novas tecnologias ocidentais: “Objetos estranhos e caros não me interessam (…) Como vosso Embaixador pôde ver por si mesmo, nós possuímos todas as coisas”. Por fim, o monarca chinês diz que seu homólogo britânico tem o “dever” de “obedecer essas instruções daqui em diante e para sempre, de forma que desfruteis as benções da paz perpétua”.
Com o tempo, com a resistência da rica e isolacionista China em se abrir, as missões pacíficas do Ocidente se transformaram em guerras perdidas pelos chineses, que acabaram subjugados por potências militarmente superiores até a metade do século 20.
Gente
Em 22 de dezembro de 1941, iniciava-se a primeira conferência entre líderes de EUA e Reino Unido na Segunda Guerra Mundial. Pearl Harbor fora atacada, americanos declararam guerra ao Eixo e Winston Churchill desembarcava em Washington atrás do engajamento da maior potência do mundo e de seu presidente, Franklin D. Roosevelt.
O encontro definiu as bases da relação íntima, direta e franca entre os dois, apesar de constantes discordâncias. Churchill se hospedou na Casa Branca, e ficou célebre um episódio em que Roosevelt teria entrado sem bater no quarto de Churchill, que acabara de sair do banho e estava nu. A um constrangido Roosevelt, o inglês teria afirmado: “O primeiro-ministro da Grã-Bretanha não tem nada a esconder do presidente dos Estados Unidos”.
Relatada por algumas fontes, a história é negada por outras. Nos relatos do próprio Churchill ela aparece em diferentes momentos como verdadeira e falsa. De qualquer forma, simboliza a relação dos dois homens. Aquela conferência inicial firmou a aliança e estabeleceu regras que valeriam até o fim do conflito: a necessidade primordial de derrotar a Alemanha nazista e o compromisso de não estabelecer paz em separado ou reduzir o esforço de guerra até o cumprimento final desse objetivo.
Sutilezas
Em 21 de abril de 1985, Tancredo Neves, presidente eleito do Brasil, morreu após mais de um mês de agonia. O fim daquele que seria o primeiro presidente civil após 21 anos de ditadura militar levou a frustração e o presidente que não foi acabou virando símbolo e ideal de democracia. Entre suas características que ficaram para a história estão a moderação e o espírito conciliador exaltados até hoje da esquerda à direita.
Há, porém, formas menos entusiasmadas de ver a biografia de Tancredo: nos anos mais duros e sangrentos da ditadura, o então deputado federal –que integrava a oposição consentida do MDB– teve atuação discreta. Além disso, em 1982, o então candidato a governador de Minas recebeu uma doação eleitoral do mesmo Paulo Maluf, aliado da ditadura, que ele enfrentaria três anos depois no colégio eleitoral. Por fim, enquanto a campanha das Diretas-Já incendiava o país, Tancredo a apoiava, mas também já negociava e preparava terreno para o caso de a emenda do voto direto não passar –hipótese na qual ele seria o candidato natural, o que acabou acontecendo.
Essa elogiada habilidade de acomodar interesses díspares e negociar com todos os lados por vezes não rende as mesmas lisonjas a alguns dos homens públicos que a ela recorrem hoje.
As quatro histórias acima relatadas mostram quatro constantes da história. Ela é feita de acasos que mudam tudo –como o acidente de Barbarossa–, de erros de cálculo que comprometem nações –caso da China imperial–, de relações humanas que acabam ofuscadas pela grandiosidade dos acontecimentos –como no caso de Churchill e Roosevelt– e por personagens mais complexos e ambíguos do que os livros acabam por retratar, tal qual Tancredo.
São a histórias assim que pretendo me dedicar aqui. Espero que goste.