Aniversariante do dia, golpe de 1964 bebeu na fonte de mentalidade militar nascida no século 19

Rodrigo Vizeu

Há exatos 53 anos, em um mesmo 31 de março, as Forças Armadas brasileiras iniciaram o processo que golpeou a lei e as alçou ao poder por 21 anos.

A tomada do Estado –viabilizada pelo apoio da elite civil e dos EUA– tinha como justificativas fatos e fantasias.

Fato era que o governo do presidente João Goulart era ruim na economia. Além disso, suas posições estatizantes e nacionalistas se opunham às dos empresários. Parte da base militar era simpática à agenda de Jango, o que causava nos oficiais pesadelos de quebra da hierarquia.

A fantasia, fosse ela baseada em boa ou má-fé, era de que o destino do governo era implantar uma república socialista, transformando o Brasil em uma Cuba continental. Isso ocorreria, se não pela improvável vontade do inábil Jango, pela influência que os comunistas exerceriam sobre ele.

Pesava o fato de que o mundo vivia sob a Guerra Fria. Um governo que hoje seria algo como um “blend” de Lula, Dilma e Itamar –com pitadas de Ciro– soava aos paranoicos como um satânico lacaio de Moscou.

Ou seja, se não viesse da direita, o golpe e a ditadura viriam da esquerda. Melhor se antecipar, concluíam os pais de 1964.

PILHA ERRADA

A noção de que os militares às vezes precisam chegar a cavalo para nos salvar de nós mesmos não é nova.

Em seu “1889”, que conta a história do golpe que derrubou a monarquia, Laurentino Gomes lembra que a pilha errada é antiga.

Estruturado de fato no Brasil na segunda metade do século 19, o Exército foi intelectualmente influenciado pelo positivismo, que, entre tantas outras coisas, defendia uma reforma da sociedade por uma elite científica e intelectual que implantaria uma república de cima para baixo.

Seria melhor que o povo fosse guiado por quem entendia das coisas, evitando desordem que botasse em risco o progresso.

Quem entendia das coisas? O Exército.

Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República e pivô do golpe que derrubou o imperador dom Pedro 2º

Tal convicção pegou de jeito parte importante da elite militar. Apareceu no tenentismo, nas crises militares dos anos 1940 e 1950 e, enfim, em 1964.

“Da mesma forma, haveria no golpe militar de 1964 um eco positivista tardio, tão profundamente arraigado no pensamento militar estaria a ideia de um grupo iluminado capaz de conduzir de forma ditatorial os rumos da perigosamente instável República brasileira”, escreve Gomes.

MILITARES X CIVIS

A certeza dos militares de que eram uma reserva moral e técnica da nação levou a uma animosidade em relação aos civis.

Laurentino Gomes lembra que as autoridades não militares eram apelidadas de “becas” (ou “casacas”), em referência à tradição histórica de formação em direito da elite civil.

Ilustração exibe Deodoro com a Constituição de 1891

Fundador do Clube Militar, em 1887, Sena Madureira (hoje nome de rua na zona sul de São Paulo), defendia a preparação “para a luta que teremos de sustentar contras as becas”.

“Generalizara-se entre os militares a convicção de que só os homens de farda eram ‘puros’ e ‘patriotas’, ao passo que os civis, ‘os casacas’, como diziam, eram corruptos, venais e sem nenhum sentimento patriótico”, afirma Emília Viotti da Costa em “Da Monarquia à República”.

NÃO ROLOU

O fracasso econômico do fim do regime militar e sobretudo sua condenação perante à história por barbarizar opositores fez a ideia de “salvadores da pátria” refluir depois da redemocratização.

Tampouco resta de pé a ideia de que militares teriam a primazia da ética. As empreiteiras hoje em desgraça se agigantaram sob as asas do generalato –na época, a censura garantia que nada apareceria na imprensa.

Uma minoria histérica e com conhecimento limitado de história e política já deu as caras em Brasília e São Paulo recentemente e dá a impressão de que as viúvas da ditadura são mais numerosas do que são.

A se acreditar no submundo da internet, parece ter mais relevância do que tem a crença de que as Forças Armadas devem se meter na política, extrapolando o treinamento especializado (e importante) que receberam.

Mas é o próprio comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que corta o barato.

Disse ele este ano ao “Valor Econômico”: “Existe um sistema de pesos e contrapesos que dispensa a sociedade de ser tutelada. Não pode haver atalhos nesse caminho. A sociedade tem que buscar esse caminho, tem que aprender por si”.

Para o bem dos “becas”, o Exército mudou.