A História Como Ela Foi https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br passagens marcantes e curiosidades do Brasil e do mundo Sat, 14 Jul 2018 05:00:55 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Se você não quiser pisar em Jesus, pode ser uma boa ideia evitar o Japão do século 17 https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/2017/04/20/se-voce-nao-quiser-pisar-em-jesus-pode-ser-uma-boa-ideia-evitar-o-japao-do-seculo-17/ https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/2017/04/20/se-voce-nao-quiser-pisar-em-jesus-pode-ser-uma-boa-ideia-evitar-o-japao-do-seculo-17/#respond Thu, 20 Apr 2017 20:26:42 +0000 https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/files/2017/04/Fumie2-180x134.jpg http://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/?p=618 Em um país de maioria católica (mesmo que não tão entusiasmada em ir regularmente à missa), um ponto deve ter chocado bastante no filme “Silêncio”, de Martin Scorsese, que está nos cinemas.

Andrew Garfield como padre Rodrigues, em “Silêncio” (Divulgação)

Trata-se do “teste” que obrigava japoneses a pisarem em imagens cristãs, como o rosto de Jesus Cristo ou de Maria, para provarem que não eram adeptos desta religião. Chamavam-se fumi-e (pisar em imagens).

Após ter inicialmente florescido por meio de missionários portugueses no século 16, o cristianismo no Japão passa a ser reprimido com força a partir do século seguinte com a ascensão do xogunato Tokugawa –os xoguns eram lideranças militares responsáveis pelo governo à época, enquanto o imperador detinha papel mais simbólico.

Viam no cristianismo uma influência daninha para a unidade nacional.

Imagem de Jesus Cristo usada na cerimônia do fumi-e, no Japão (Wikimedia Commons)

A repressão aos cristãos (kirishitan, como eram chamados) e aos estrangeiros que propagavam a fé no arquipélago existiu oficialmente até meados do século 19, quando o Japão se abriu para o mundo.

O blog procurou uma especialista no assunto: Renata Cabral Barnabé, doutoranda do Departamento de História Social da USP (Universidade de São Paulo). Leia abaixo a entrevista.


A História Como Ela Foi – Como surgiu o fumi-e?
Renata Cabral Barnabé – O fumi-e surgiu no contexto da perseguição que se iniciou em 1614, com o edito de proibição do cristianismo por Tokugawa Ieyasu, e foi aumentando com o passar dos anos. A prática foi instituída pelo bugyô (magistrado) de Nagasaki, Takenaka Uneme, que assumiu o posto em 1629 –ainda que algumas fontes sugerem que a prática era usada com os cristãos de Nagasaki desde 1626, os documentos oficiais datam a adoção da mesma a partir de 1631. Ele foi sistematizado após 1640 e em 1660 implementado na ilha de Kyûshû –local de maior atividade missionária desde [Francisco] Xavier [pioneiro da Companhia de Jesus e missionário no Oriente] como parte do ritual religioso de ano novo. Aqui, toda a população era obrigada a pisar nas imagens, ainda que não fossem suspeitos.

Essas imagens eram confeccionadas no Japão ou tiradas dos próprios jesuítas? Jesus e Maria eram as principais representações?
As imagens inicialmente eram aquelas recolhidas de cristãos descobertos, encravadas em madeira, bem como mostra o filme. Mas com a sistematização e difusão da prática para outros locais do Japão, os funcionários japoneses tiveram que fazer as suas próprias versões. Germain Felix Meijilan (1785-1831) da Companhia holandesa das Índias Orientais que esteve em Dejima entre 1827-30 relata que os habitantes contavam de um artesão chamado Hagiwara Yûsa que teria produzido 20 fumi-e de metal em 1669 para o bugyô de Nagasaki. Suas imagens eram tão perfeitas que não se via diferença com as peças originais. Isso acabou por lhe custar a vida, pois foi degolado por ordem do xogunato que temia que ele trabalhasse posteriormente para os kirishitan. As imagens eram sim de Jesus e Maria, pois era o elemento comum de todas as comunidades kirishitan, independente da ordem que as tivesse cristianizado inicialmente (mendicantes ou jesuítas).

Havia algum outro tipo de cerimônia além de forçar as pessoas a pisarem em um objeto sagrado?
O sistema de perseguição aos cristãos foi complexo e bem pensado. Havia recompensas aos delatores; sistema dos grupos de cinco (gonin gumi) que responsabilizava cada casa por duas casas a sua direita e duas a sua esquerda e caso alguém fosse descoberto cristão todos do grupo eram penalizados; declarações escritas de que não eram mais cristãos; obrigação de filiação a templos budistas (terauke seido). Mas creio que cerimônia era apenas o fumi-e mesmo, que era usado tanto para descobrir cristãos quanto para evitar recaídas, já que era requerido aos antigos apóstatas que pisassem anualmente nas imagens.

Ilustração feita pelo alemão Philipp Franz von Siebold, que viveu no Japão na década de 1820

A cerimônia existiu até o cristianismo voltar a ser aceito no Japão?
Pelo que temos notícias sim. Meijilan descreve que o fumi-e era sim usado em Nagasaki no período que ele passou por lá.

Ao escolher evangelizar ali, os jesuítas tinham algum interesse especial no Japão ou só fazia parte de uma grande política de espalhar a fé cristã?
As missões foram espalhadas pelo mundo inteiro, mas é claro que elas precisavam ser acompanhadas por algum interesse temporal que as pudesse justificar financeiramente. Por exemplo: no Japão os comerciantes portugueses chegaram antes e, vendo uma ótima oportunidade de comércio, ficaram por ali e os jesuítas os seguiram –se adentrando, posteriormente, no território japonês muito além do que os mercadores lusitanos. A pergunta é um pouco capciosa. Quero dizer, não, os jesuítas poderiam não ter outro interesse que evangelizar um povo que eles viam grande chance de se tornar cristão, mas seus financiadores –os impérios ibéricos– sim, possuíam interesses comerciais no lucrativo comércio da prata japonesa e seda chinesa.

Pelo fato de a perseguição ter ocorrido no contexto do poder central japonês preocupado com os senhores locais convertidos ao cristianismo, ela foi mais política do que religiosa?
O início da perseguição se insere sim no contexto da centralização ou reunificação do poder japonês. Em 1587, Toyotomi Hideyoshi já havia expulsado todos os missionários e proibido que os senhores se convertessem sem uma autorização prévia dele. O fantasma de uma invasão europeia que se apoiaria tanto nos senhores cristãos quanto nos missionários existia desde então. Quando os Tokugawa se estabeleceram no poder quiseram eliminar essa ameaça. A presença dos holandeses, que colocavam uma alternativa ao comércio desempenhado pelos comerciantes portugueses, ajudou para que os Tokugawa se sentissem a vontade para forçar tal proibição, que poderia desagradar muito aos portugueses. Na década de 1630, com a revolta camponesa de Shimabara, o medo do cristianismo aumentou e muito. Isso porque sua ameaça não era apenas de uma invasão dos reinos ibéricos, mas de desobediência civil entre a classe mais baixa e populosa do Japão daquele período. Daí a criação de um sistema de perseguição tão complexo e custoso como o foi e também a política do sakoku (país fechado) que encerrou de vez as relações com Portugal. Assim, pode-se ver que a perseguição é 100% política, ao menos ao meu ver.

Liam Neeson como o padre Ferreira, em “Silêncio” (Divulgação)

O filme aborda isso: em que medida os japoneses compreendiam de fato a doutrina cristã tal qual os europeus? Havia um sincretismo?
Não creio que se possa eliminar o sincretismo totalmente em qualquer que seja o caso, ainda que os missionários, tanto jesuítas quanto mendicantes, tenham se esforçado intensamente por isso. Em que medida aqueles japoneses entendiam a doutrina cristã? É muito difícil de responder. Há comunidades que viveram por décadas junto de missionários europeus e outras que viram um por somente uma semana, foi batizada, ensinada acerca de algumas fórmulas essenciais da fé como batismo, orações principais, confissão e etc. e só. Assim há uma gama muito diferenciada de níveis de conhecimentos. Além disso, eram em geral comunidades de agricultores, com uma cultura oral bastante difundida e, com a perseguição, todos os materiais cristãos, inclusive escritos, foram recolhidos e queimados. Do período da perseguição mais forte temos uma obra de uma dessas comunidades de cristãos escondidos, kakure kirishitan, que foi dada ao padre Petitjean em 1865: Tenchi Hajimari no Koto. A obra mostra um sincretismo incrível, com elementos mágicos nada comuns ao cristianismo católico romano. Ainda assim, é expressão da compreensão daquela comunidade em particular, após mais de dois séculos de perseguição e sem qualquer contato com sacerdotes provindos de reinos cristãos.

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Como os puritanos roubaram o Natal https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/2015/12/24/como-os-puritanos-roubaram-o-natal/ https://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/2015/12/24/como-os-puritanos-roubaram-o-natal/#respond Thu, 24 Dec 2015 21:34:20 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg http://ahistoriacomoelafoi.blogfolha.uol.com.br/?p=195 Em meados do século 17, os ingleses celebravam o Natal de forma não muito diferente de hoje. Lembravam do nascimento de Jesus Cristo, trocavam presentes, bebiam, comiam coisas típicas do período, festejavam e o comércio fechava no dia 25 de dezembro.

Os puritanos, protestantes que reivindicavam uma reforma que se afastasse da forma mais radical possível do cristianismo da linha católica apostólica romana, não gostavam nada disso. Repudiavam como o Natal bebia na fonte dos rituais pagãos pré-cristãos, seja pela forma ou pela época em que era comemorado.

Para eles, faltava celebração do Cristo e sobrava extravagância, desperdício e imoralidade. Detestavam a data séculos antes de Dr. Seuss escrever “Como o Grinch roubou o Natal”.

A reclamação puritana deixou de ser apenas uma chiadeira à medida em que o Parlamento inglês, dominado pelos puritanos, ganhava força e contestava o poder do rei Carlos 1°, de tendências absolutistas e simpático a uma reforma protestante mais suave.

Em 1643 e 1644, os parlamentares chegaram a se reunir normalmente no Natal. Em 1647, o Parlamento enfim aboliu as festividades natalinas –e também as de Páscoa. Outras medidas que impunham uma vida mais austera aos ingleses foram aplicadas.

Em guerra civil contra Carlos 1°, o grupo pró-Parlamento foi vitorioso e o rei, executado em 1649. Novas legislações anti-Natal foram colocadas em prática, como ordens obrigando lojas e mercados a permanecerem abertos no dia 25 e proibindo cerimônias especiais em igrejas.

O banimento do Natal –apoiado por Oliver Cromwell, que se tornou o Lord Protector da Inglaterra sem rei– não ocorreu sem resistências. Revoltas eclodiram pelo país e os ingleses recorreram a cerimônias natalinas clandestinas.

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Panfleto de 1652 relatando que Natal seguia sendo celebrado na Inglaterra apesar das proibições

Grinch nos Estados Unidos

Com o o colapso do Protetorado de Cromwell e a restauração da monarquia sob Carlos 2°, em 1660, o Natal voltou à legalidade na Inglaterra.

A má vontade com a festa, porém, atravessou o Atlântico. A América inglesa foi colonizada em larga medida por puritanos, que consequentemente não queriam saber dos rituais natalinos.

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Cartaz com proibição de festejos de Natal ameaçando com multa quem recorresse às “práticas satânicas”

De 1659 a 1681, quem celebrasse a data em Massachusetts pagava multa. Mesmo quando não era alvo de punição, a comemoração do Natal na América inglesa foi incomum ou mal-vista mesmo ao longo do século 18 e após a independência. O feriado para celebrar o nascimento de Cristo só se tornou feriado federal nos EUA em 1870.


Este blog deseja um ótimo Natal e um 2016 de boas histórias –e sem muito puritanismo.

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